Um silêncio tão raro

Eu queria contar sobre um sonho, eu estava ali, e tudo começou quando eu estava tendo problemas para dormir. Há uma luz que entra em casas sem nenhum interesse para com outras casas. Enquanto conto saiba que sinto calor e hedonismo.

As costuras dos corpos, difusas, fragmentadas, não me permitem a recordação, mas um homem me acompanhava. Seu desgosto por mim era imenso, da sua boca: silêncio, tépido. A aparência familiar. Instável. Escrevia sobre uma mesa. Um espelho nos fazia companhia, do lado direito. Parecia concentrado, li de relance algumas linhas do que escrevia, nada impressionante. O julguei. O respeitei ainda menos. Sua feição indicava, lentamente, a frustração urgente, a carne triste que me distancia… intrometida com a beleza enigmática, do olhar cego, diminuí apoiado na mesa, claro, arqueando os ombros, perdendo dignidade. O homem pede dois sorvetes. Eu não como sorvete. Quero vomitar. Vomito. Volto do banheiro, sento, duas mulheres estão com os sorvetes, sorrindo, rindo, alegres conversando com o homem, eu apago. Quando eu não estiver mais vivo. Vivo… Crio em mim a impressão de uma escadaria, minhas mãos querem tocá-la, minha epiderme torna-se algodão, minhas roupas desaparecem, lençóis me cobrem, estou numa cama com as duas mulheres e o homem. Alguma coisa se solidifica, pesa meu coração, há algo mais que não compreendo, quero e não consigo. Ou talvez não, queira.

O hiato deste Sonho, pelas pistas avulsas, sinais exaustos de uma fumaça úmida que faz meu anoitecer lindo, e a translúcida pele da mulher que me abraça, e que acaricia minhas pernas com os pés, alados, o branco da memória, se eu encarar você por tempo suficiente, isso foi um dia tudo o que eu quis. Um medo sem fonte. Do qual não acordo. Ela tem marcas na pele do seu rosto, sorri para mim como se transfigurada no ritual do tempo, um amor tão gentil. Uma garotinha sonha em tirar o véu. Tenho anemia, tuberculose, assombrações… mais exames estão a caminho, e ainda: você permanece comigo. Ela olha para mim, como se o não encontrar significa que vai continuar assim a noite inteira, os olhos vidrosos, os seios cantam de outro modo, a cólera se esvai, eu choro, meu rosto encharcado, ela me assiste.

O homem está deitado ao meu lado, vestido, sombra. Deitado paralisado, como se num caixão. Tento rir, algum dia hei de acabar num caixão também. A outra mulher levanta da cama, de costas, nua, abre a porta de um guarda-roupa. Pernas quietas, cruzadas, longas. A ignomínia, minha mãe diria. Tento pensar como um socialista. Sinto sua respiração, dedo por dedo, lábio por lábio, sombra por sombra. Ânsia por um beijo, de boa noite, em lágrimas, que fluem, e uma amante língua afoga meus poros. Só o prazer em seu espasmo derradeiro é o mesmo; ainda que o mundo antes e depois tenha se despedaçado, é preciso reconhecê-lo, e o vestir, singelo, sim. Caiu o tempo na exceção. Mentiram para nós, descemos, sublimes. O véu é verdadeiro. Só olha para mim, pede ela. O choro é interrompido. Em breve, talvez, digo. Um ruído explode. Cessa, colossal juventude. A grossa fuga da voz, do silêncio, escapa, quando cai, como um ostinato, e meu corpo me basta, quando, quero o tudo, quando o quero.

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