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A separação dos corpos: chegaram no quarto do escritor às oito, reviraram tudo por tudo, recolheram os livros mais ameaçadores; o homem de sobretudo que parecia ser ali dono da palavra, possivelmente o comissário, disse, mais lamentando que celebrando: menos um maoista; sem a teoria eles não são Nada.

Quanto tempo mesmo dura aquele filme?

Qual é mesmo, chefe?

Hum. Um francês. Um r. Bresson.

A! então dura para sempre...! ou uma hora e meia, que é a duração comum dos filmes dele, isso.

Mesmo… temos que nos apressar.

O escritor estava no cinema; engolido pela projeção, sem saber que em casa suas joias estavam tendo destino excessivamente parecido. Ao que parece o escritor cogita rever o filme, ainda nessa noite, “é para ruminar bem”, mas tem essa ideia em conflito porque lembra de uma citação mais ou menos assim: o filme é como um fósforo, só queima uma vez. Enfim. Nem tudo depende do fogo: o fogo é superestimado, quem sabe, mas é derradeiro, isso ninguém discorda.

O comissário estava dividido entre duas deliciosas tentações: a de confiscar os livros e a de lê-los, ali mesmo, debaixo da luz cinza. No entanto, só a primeira tentação garantia a ele um salário. É preciso pensar em suas crianças, não em h. Balzac. É preciso pensar em sua esposa, não em c. Baudelaire. Ainda que ela esteja agora no segundo (ou terceiro) orgasmo com este homem cujo comissário está quase descobrindo a identidade. Falta pouco, sua investigação caminha em passos prometedores. É preciso paciência. Virtude tão ambígua.

Os fatos são que o escritor mantia em seu apartamento encontros estranhos; a ditadura já se foi, sim, mas: há de se cuidar. Há de se cuidar com jovens belos e tristes lendo livros revolucionários.



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