notas sobre o repertório, de michel butor

 

Giovanbattista Tusa: “A coisa nasce difícil e obscura.”¹

Depois, em processo de maturação: a coisa obscurece-se ainda mais. O ponto de partida é a história da caverna de Platão. Desta vez, porém, conclusões são diferentes. A história se modifica. O cativo se liberta das correntes; por acaso encontra-se com a oportunidade, caso dê alguns passos em terra estrangeira, de enxergar uma nova realidade (um novo fragmento de mundo), no entanto, nada do que vê tem a unidade mínima de clareza; o sol ainda é o mesmo e talvez venha daí o incômodo, uma vez que o “mistério” do real se engrandece e, diante da novidade, nosso personagem chega à anábase da confusão. Às vezes, nosso personagem nem mesmo esteve preso, afinal, ocasionalmente basta apenas um sono curto para se desatualizar com o fluxo mundano de acontecimentos e portanto se atormentar com ansiedades. 

Para Michel Butor, é através do romance que nosso personagem (essa sinédoque destituída de limites) pode encontrar a alternativa capaz de estabelecer uma “coluna vertebral” em sua existência e, então, fixar um ponto de equilíbrio próprio no mundo, em sua vida. Ele [o romance], nos diz Butor, “é assim um prodigioso meio de nos manter de pé, de continuar a viver inteligentemente no interior de um mundo quase furioso que nos assalta de todos os lados.” É valiosa também essa compreensão primeira de que o mundo em que vivemos é um lugar inóspito; sobrevivemos nele por uma teimosia quase inexplicável. 

O crítico de cinema André Bazin tinha uma ideia fixa: a de mostrar que o cinema conservava o real e que antes de significá-lo e de assemelhar-se ao real, ele o embalsamava. Essa ideia me parece, grosso modo, encarnar também a síntese do pensamento de Michel Butor, no escopo do romance. 

Seus elogios ao romance carregam, todavia, um complemento, isto é, argumenta Butor: nosso mundo está em constante processo de mudança, adaptação, evolução, retrocesso etc. E este poder de significação do real que a narrativa pode proporcionar aos envolvidos de maneira ativa com uma obra só, de fato, tem efeito, quando sua forma é minuciosamente costurada de tal maneira a forçar os nervos de nosso olhar; quando a narrativa é costurada com o propósito técnico de desengessar a experiência: fragmentada, obscura e embaralhada do microcosmos de cada um. Para tal efeito, é necessário que o autor se debruce com profundidade no aspecto formal do texto, pois, como salienta Butor, o romance é uma singular forma de laboratório; e é este trabalho de desenvolvimento e pesquisa o principal responsável por provocar a ruptura qualitativa entre os romances extraordinários e os romances “comuns”. Por comum, compreendemos: o romance que segue uma estrutura formal padrão, que respeita, quase sagradamente, o estado das coisas e, por essa razão, não arrisca rupturas. 

Há a possibilidade de que, em determinada visão, seja impossível exigir que o experimentalismo formal levado às últimas consequências realmente force o real, como crê Butor. Em todo caso, nunca é, porém, um exagero exigir o próprio impossível da experimentação formal; e de experimento em experimento, nesta prática laboratorial sem fim, o romance como coisa se desobscurece, e a dificuldade – tanto de entendimento da matéria textual para o leitor, quando a de elaboração dessa matéria para o autor – se justifica e, quem sabe, ressignifica-se: eternaliza-se.  

1 TUSA, Giovanbattista; BADIOU, Alain. Do Fim. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.

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