LACUNA (notas sobre um incômodo)

Subi pela escada rolante. Segundos de postura quieta. O canto do meu ecrã ocupou-se com a imagem cinzenta, granulada, dessa menina fumando um cigarro, sedenta coisíssima nenhuma, particularmente bela num mundo que a despertencia com compromisso, nos meus ouvidos a timidez da metrópole, o silêncio transversal da noite vazia, lembro-me que essa cidade realmente pertence a nós. A paris queima e, aqui, escrevo um obrigado no cadáver de nossos algozes; em francês, é claro. Que nos deviam isso o tempo todo. Extravagâncias de perpétuo mal-estar, mas a idade permite, e a antítese inanimada: nunca mais. Esbarro no concreto da parede, continuo andando, a carne é triste, no pó daquela encosta

Em frente, até as referências cessarem e a pele da minha mão ressecar. A vergonha nesses momentos é coisa estrangeira, adjetivada por palavras doidas; faz dançar, sem soprinhos. Afinal, o fogo dos poetas de castelo es com os dias contados. Ou é o oposto

Ela agora longe das sombras, no cadafalso de anonimato, pareceu pouco mais velha. Minha idade, quem sabe. Caí no rio, tornei-me água, paralisada. E é como se a água se simplificasse. Insensível, porque é isso que as ondas fazem com gente grossa. Te tornam espuma, nada. Na cor de silêncio a opulência é irresistível. Como se estivesse há tanto tempo escorada na faia, lendo a Eneida, obrigando-me a ficcionalizar árvores,desterrando a ameaça que oferece a madrugada até finalmente extinguir todo carvalho, Ela surgiu, sublime,do escuro, vestindo um vestido violeta e saltos claros. A onomatopeia dos passos me parece agora irrelevante, mas naquele momento foi melódica.

Se afogou. Gritou uma voz simbolista. Estou bem, minha fala aguda clareou a noite (clarão de palavra). Eu quero a verdade e nada mais, país do princípio de outubro, sim, e eu li todos os livros.  

Palavra é o não-dito. Me disse que a noite estava vazia para ela também, quer dizer, isso eu absorvi das poucas palavras que ela me permitiu ouvir, e eu a entendo, sua voz é bonita demais para desperdiçar comigo. Maravilhosa, em verdade. A calçada era agora só um firmamento anuviado, meus passos pelo cimento estreito pensavam numa ‘poesia’ própria que eu, conflituosamente mundano, jamais terei discernimento suficiente. Um preguiçoso extemporâneo. E exclamar: vagabundo, bem, soa deselegantíssimo. Para a desavença desta mulher, que pareceu ter uma impressão inesperada de mim, uma impressão de sujeito confiável e quieto, não exaustivo, mas cuidadoso, quem sabe: de amigo. Ela sabe que, se estivéssemos enamorados, no fragmento final de nosso romance eu jamais diria: te dei tudo, fui um anjo e, pra quê... minha roupa estava molhada e, particularmente, meu cabelo quando molhado me provocava uma insegurança indescritível, que fez-me ficar de cabeça meio abaixada por um tempo. Ela estava também encharcada mas sustentava a postura inabalada, com disciplina, charmosa. Então percebi que a ela devia minha vida e, nesse momento, quis fugir. No entanto, correr nesta condição fará com que minhas roupas toquem minha pele e eu sinta aquelas fisgadas de frio, que congelam a fronte. Não, não, Nunca irei de encontrar o inencontrável, o que eu quero é este espaço de sobra, de demasiada incompreensão, de fim 

Tento olhar para o rosto dela, resolvi proferir uma palavra carinhosa, mas ela não estava lá, não mais, porque eu a mandei embora.
atrás de mim, no chão, o livro:
a cura.  

(A morte não é caminho, e se é, é caminho de violenta irresolução, queremos verdade e sabemos que não podemos exigir dela que se mostre sozinha. Quero, acompanhado de obscuridades como o amor, no compasso deste furioso mundo, enquanto rimos de seu som, mudá-lo, para a minha eternidade. Referências não acabarão, falei por falar, além do mais, eu entendi o que havia de entender e permaneço com os sapatos calçados, e enquanto essa chuva me molha e enquanto me recolho na segurança da margem: já venci. Está ficando cada vez mais difícil, eu sei, mas o               transfundirá esse sangue do meu lado.)  

Pouco depois saí do sereno e na manhã seguinte fui pra São Paulo.

B. Agnus.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Romantic Times